sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

o padeiro chamado Neo

A pintura mural conhecida como “O padeiro e sua mulher” (ou Neo e sua mulher, século I, Roma) foi descoberta em Pompéia, cidade soterrada pela erupção do vulcão Vesúvio no ano de 79 d.C. É um dos primeiros retratos da História da Arte em que não há um intuito fúnebre ou religioso.

Na época, o mais comum era o retrato escultural de grandes personalidades, ou aqueles com finalidade fúnebre ou religiosa.

A simples intenção de retratar a existência de personagens comuns era algo raro nessa época em que a pintura romana estava estreitamente ligada à arquitetura e sua finalidade era quase exclusivamente decorativa. Esse retrato me “fala” também de uma tendência à valorização do homem, antes visto como tão insignificante diante de Deus.

Embora com motivações diferentes, e a meu ver até antagônicas, essa pintura traz muitas semelhanças com os retratos de Fayum (oásis situado ao sul do Cairo), retratos mortuários pintados sobre tela de linho ou madeira e colocados sobre os sarcófagos. Remontam à época da ocupação romana, nos primeiros séculos da nossa era. A Berger Foundation considera estes os primeiros retratos de personagens pintados na História da Arte, bem como o relato de um encontro histórico entre duas culturas: a romana e a egípcia.

As semelhanças a que me refiro estão no naturalismo e na expressividade dos retratados. Segundo GOMBRICH (p. 124): “Esses retratos, que certamente eram executados por humildes artífices a um baixo preço, ainda hoje nos espantam por seu vigor e realismo. Poucas obras de arte antigas se conservam tão ‘modernas’ quanto essas”.

E o elemento que os diferencia, para mim, também os aproxima: enquanto na arte funerária a finalidade era divina, de exprimir a serenidade de um personagem em paz diante da morte, o que lhes propiciaria a vida eterna, “O padeiro e sua mulher” com finalidade decorativa, doméstica e de registro dos donos da casa, também os ETERNIZA na parede daquele lar. Nos dois casos, a identificação, seja no túmulo ou na parede da casa, perpetua a existência das personalidades retratadas.

Curioso é que, assim como o retrato do padeiro, os de Fayum retratam personagens em vida jovem e saudável, o que indica terem sido realizados em vida e guardados pelos retratados até o momento de sua morte, quando eram entregues a embalsamadores. Ou seja, o padeiro, sua mulher e os mortos de Fayum estiveram diante do pintor, possivelmente palpitando sobre o resultado da obra, possivelmente desejando fidelidade à sua aparência e beleza no resultado.

As semelhanças entre os retratos mortuários e a obra romana aparecem também no aspecto estilístico, na ênfase nos traços fisionômicos e no fundo neutro que concentra a atenção nos retratados. Ambos exploram a expressividade do olhar, que mira o espectador atraindo-o para si, buscam ser fiel às feições, mostram o vestuário, as jóias, os adornos e algum elemento alusivo ao ofício dos retratados. Os primeiros, no intuito de alcançarem a vida após a morte, o segundo, no intuito de marcar sua existência.

Os retratos de Fayum são retratos de romanos que escolheram o modo egípcio de abordar a eternidade, fazendo-se mumificar com bandagens e sepultados em sarcófagos, com suas imagens colocadas sobre a região do rosto. Substituem os retratos de Osíris, empregados para fazer alusão à eternidade pretendida, crença presente na cultura Egípcia durante a antiguidade. Alguns retratos de Fayum mostram figuras estilizadas, cores chapadas e pouco volume - ilustrações “ingênuas” que me remetem à arte naïf, pela simplicidade do desenho e pelo uso de padrões e cores para dar o efeito de perspectiva. Mas alguns retratos mortuários têm uma sofisticação estética surpreendente para a época: o uso de luz e sombra para a busca do efeito de volume e com isso dar fidelidade à expressão fisionômica do retratado. É o uso da técnica para alcançar a representação do real. 

A pintura romana sofreu forte influência da arte etrusca popular e da arte greco-helenística, a primeira voltada para a expressão da realidade vivida e a segunda voltada para a expressão de um ideal de beleza - isso somado ao naturalismo e ao espírito sério e trágico da arte helênica.

Na antigüidade, a pintura romana esteve fortemente ligada à arquitetura, servia para completá-la e enriquecê-la e tinha finalidade quase que exclusivamente decorativa. No século II a.C., época da República, as famílias patrícias costumavam mandar que se fizessem imitações da decoração de templos e palácios nas suas casas, chegando a simular, nas paredes, portas entreabertas que davam acesso a aposentos inexistentes. Além dos ornamentos palacianos, os temas favoritos escolhidos por essa arquitetura fictícia eram quase sempre cenas da mitologia grega ou paisagens de cidades e praças públicas tipicamente romanas. Apenas na metade do Império esse costume deixou de ser moda, e as grandes pinturas murais acabaram tendo suas dimensões reduzidas, transformando-se em pequenas imagens decorativas.

O mosaico também decorava os interiores dos lares abastados e dos edifícios públicos, cujos temas eram cenas mitológicas, paisagens rurais ou marinhas (com sua fauna e flora) e também retratos (pessoal ou familiar). Em termos de retratos, a grande inovação foi o retrato escultural, muito presente na arte romana da época. Roma foi ornamentada pelas esculturas gregas até surgir o retrato histórico, quando as idealizações de heróis foram substituídas por retratos esculturais de grandes personalidades que mostravam os traços particulares da pessoa.

A tradição do retrato começou na antiguidade, mas esteve durante muito tempo restrito a uma pequena parcela da sociedade.  Há alguns exemplos no Antigo Egito, onde apenas o faraó e sua família tinham o privilégio de serem retratados, na Grécia, onde as moedas eram cunhadas com o retrato dos seus soberanos, e em Roma, onde principalmente utilizavam o retrato para cultuar os antepassados (“O padeiro e sua mulher” é exceção).

O retrato popular começou a aparecer com mais força a partir do século XV, até o surgimento da fotografia no século XIX.

A idéia do retrato como imagem fiel à aparência do retratado esteve presente apenas em determinados momentos históricos, como no antigo Egito, nas dinastias IV e XVIII do Antigo Império e no Império Novo. Na Grécia antiga, somente no período helênico os retratos incluíram aspectos particulares dos retratados. Durante a Idade Média o naturalismo foi interrompido e retornou a partir do Gótico, quando, com a revalorização da natureza, do homem e da razão, o retrato desenvolveu-se como gênero autônomo, destinado aos nobres e burgueses.

No Renascimento, com o naturalismo e o humanismo em alta, o retrato tornou-se um dos principais gêneros da arte, com finalidades particulares e públicas, tornando-se um meio para os burgueses consolidarem seu prestigio e seu poder social. No Barroco o retrato naturalista voltou com força total, especialmente os retratos de corpo inteiro.

No Impressionismo e na Arte Moderna os artistas negaram os padrões tradicionais da pintura, o naturalismo deixou de ser unânime e as novas abordagens estéticas entraram em choque com as expectativas da sociedade, tornando escassas as encomendas de pintura de retratos pela burguesia, tão comuns até o Romantismo. A fotografia passou a atender à função prática do retrato e permanece assim até hoje.

Enfim, “O padeiro e sua mulher”, retrato pintado no primeiro século da nossa era, sem fins religiosos ou fúnebres, é um exemplar do nascimento do retrato tal como o conhecemos hoje, essencialmente destinado a “representar” a pessoal como ela é, fiel à sua aparência, à sua singularidade, deixando-a para a memória. E isso me leva a pensar em como, depois de cerca de 2 mil anos de história, esta obra, dotada de um realismo e de uma expressividade incomuns, pode parecer tão atual.

Fazendo um contraponto com os retratos mortuários de Fayum, de intuito especificamente fúnebre, penso sobre o casal retratado em “O Padeiro e sua mulher”. Vejo-os como pessoas “modernas” para a época, porque foram pessoas comuns que utilizaram o retrato na busca de identidade e memória, com a vontade de ter um pouco de si gravado na parede da casa, eternizando-se (como desejavam os retratados de Fayum) através da decoração. Um pouco de vaidade, a intenção de marcar presença, um tanto de desejo de sentir-se especial e eterno. Funcionou. Hoje, em pleno século XXI, cá estou, escrevendo sobre eles, intrigada com essas personalidades tão antigas e tão iguais a nós contemporâneos, e me perguntando se o nome do padeiro era mesmo Neo. Ou se Neo realmente foi padeiro.         


BECKETT, Wendy. História da Pintura. São Paulo: Editora Ática, 1997. p. 22.
GOMBRICH, E.H. História da Arte. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999. p. 117-131. 

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