sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Bosch, o estranho (e seu jardim delicioso)

O tríptico conhecido por Jardim das Delícias representa as conseqüências do primeiro pecado: o pecado original gerou no Paraíso um mal que se alastrou pela terra e cujo castigo são os sofrimentos no inferno – no painel esquerdo há o Paraíso; no central, a luxúria dos homens na Terra; e no direito, o inferno e a condenação eterna. Essa obra foi produzida na Holanda, na cidade de S`Hertogenbosch, por Hieronymus Bosch (1450-1516), considerado por alguns historiadores um “marginal da cultura”, esquecido ou incompreendido durante vários séculos, cuja obra só foi vista e estudada a fundo com o advento da psicanálise e do surrealismo. Segundo o padre José de Sigüenza (séc. XVI), em História da Ordem de São Jerônimo: “a diferença, que no meu entender, existe entre as pinturas deste homem e a dos outros é que os demais procuraram pintar o homem tal como ele parece externamente; apenas este se atreveu a pintá-lo como ele é por dentro” (Mestres da Pintura, 1977, p. 05).   

Bosch viveu num período particularmente crítico: o da passagem do feudalismo ao capitalismo comercial, passagem de um modo de vida a outro, que, no campo cultural, foi marcada pelo Renascimento. Entretanto, Bosch não é um representante dos ideais humanistas e da vontade de dominação material e espiritual do mundo; pelo contrário, Bosch representa o limite de uma percepção da realidade em vias de extinção – uma das expressões mais altas e alucinadas do mundo medieval.

Ludwig Von Baldass (Hieronymus Bosch, Viena, 1943), maior estudioso da obra de Bosch, ressalta a individualidade do artista:

“Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da história da arte; é o pintor que, através de sua arte – que está historicamente a altura de sua época – quer mais que os outros. Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar. Apresenta à humanidade um espelho de duas faces. Nele, a humanidade vê refletida, por um lado, sua necessidade e sua perversidade; por outro lado, as conseqüências terríveis, no Além, resultantes de seus pecados mortais. Nesse sentido, Bosch continua sendo um filho da Idade Média; mas, pela maneira totalmente independente de exemplos que ele emprega para representar suas concepções dentro das formas artísticas, pertence aos tempos modernos. Dessa forma, encontra-se no limite entre as duas épocas”. (Mestres da Pintura, 1977, p. 06).  

Já segundo Herbert Read: “Embora Bosch vivesse a aurora do Renascimento, ele é essencialmente um artista do Medieval ou do gótico recente. Era um místico religioso ainda não influenciado por qualquer desejo de afirmar sua própria individualidade”. Pelo que se vê, a individualidade de Bosch destaca-se entre os pintores de sua época pela peculiaridade de sua visão de mundo, sem que houvesse nele a típica idéia do Renascimento de afirmar sua própria individualidade através da obra - o que explica o fato de Bosch ter vivido ligado ao medievo em pleno auge da renascença (foi contemporâneo de Leonardo da Vinci: 1452-1519)

O espírito medieval que ainda animava Bosch não era mais visto na produção artística das grandes cidades onde o Renascimento já tinha estabelecido seus princípios. S`Hertogenbosch era uma pequena cidade mercantil e camponesa, o centro de uma região agrícola e ponto de reunião da população rural, de onde Bosch extraiu os elementos para sua obra. Acredita-se que não existia em Bosch um desejo de elaborar um criptograma misterioso, mas sim a intenção de transmitir mensagens transparentes, já que era influenciado pela cultura popular de uma cidade provinciana e camponesa. 

Sua obra produzida foi produzida numa época em que o mundo vivia uma crise espiritual que provocou uma generalizada angústia em relação ao Além (antes neutralizada pela fé inabalável da Idade Média). Perseguia-se e castigava-se a presumida bruxaria com a crueldade que vemos testemunhada com realismo em O Jardim das Delicias, numa linguagem alucinada na qual a animalidade do Diabo se traduz em cara de ratos, garras de aves ou caudas de repteis.

A cultura da época exerceu forte influência sobre o pintor: as gravuras e relatos populares de temas mítico-religiosos marcaram-no mais que as obras dos grandes pintores do período – dentre eles Jan van Eyck e Rogier van der Weyden. 

Na época em que viveu, a idéia sobre a diferença entre o mundo aparente e o mundo oculto era recorrente, mas um século depois de sua morte já era diferente, e talvez por isso a eficácia simbólica de sua obra tenha por um tempo perdido força e passado a ser vista como um fantástico e arbitrário produto, resultado do humor ou capricho de seu autor. O fascínio por alguns de seus contemporâneos, o descrédito posterior e sua atual reavaliação decorrem essencialmente de suas alegorias míticas - cuja interpretação foi tentada a partir de duas perspectivas: a iconográfica e a psicanalítica.

A interpretação iconográfica, representada por Wilhelm Fränger, tenta remeter a simbologia de Bosch à cultura religiosa de sua época, momento de grande inquietação religiosa – e daí a importância da especulação acerca de sua participação em determinadas “seitas”, questão que cerca a análise de sua obra, ora vista a serviço de Igreja, ora vista como herege. É fato comprovado historicamente que Bosch participou ativamente da Confraria de Nossa Senhora, de 1486 até sua morte em 1516, organizando reuniões para preces em comum, distribuindo pães aos pobres, celebrando funerais, ornamentando retábulos e colaborando nos Mistérios (representações teatrais que incluíam balés demoníacos, onde espectros e esqueletos eram as principais personagens). Esta irmandade se tornou um difusor de cultura na sociedade de ‘s Hertogenbosch, pela riqueza e importância de seus membros, na maioria laicos. Nessa época também havia na cidade outro grupo religioso, a dos Irmãos da Vida Comum, fundado no século XIV por um místico que anunciou com antecedência as críticas à vida religiosa que, através de Lutero, eclodiram na Reforma. Não existem provas sobre a relação de Bosch com essa irmandade, mas sabe-se de sua influência sobre a Confraria de Nossa Senhora – a representação, em sua obra, de monges gordos e dedicados aos prazeres carnais indica até onde ele partilhava da crítica à deterioração moral da Igreja. E ainda, outra “seita”, a dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito, também pode ter servido de inspiração ao pintor. Acredita-se que essa irmandade teria sido formada por iluminados místicos dedicados ao nudismo e a orgias sexuais e que tenha sido originada das idéias de J. Floris, místico cristão do Século XII, que dividia a história em três momentos: a Era do Pai ou da Lei, a Era do Filho ou dos Evangelhos e a Era do Espírito (que seria o fim escatológico do processo), sendo que antes de cada uma dessas etapas haveria um período de incubação personificados em Adão, Abraão e São Bento – “Será essa trilogia o fundamento da concepção triádica de O Jardim das Delícias? É possível depreender, a partir disso, que Bosch pertenceu à seita herege?” (Mestres da Pintura, 1977, p. 11). Há estudiosos que vêem nessa doutrina a chave simbólica capaz de elucidar as alegorias de Bosch.

Entretanto, segundo Erwin Panofsky, o prestígio social de Bosch, burguês de ‘s Hertogenbosch e pintor oficial da Confraria de Nossa Senhora, seria incompatível com a adesão a um grupo herege, terrivelmente perseguido e castigado.

A interpretação psicanalítica da obra de Bosch é feita com base nas teses de Sigmund Freud (1856-1939), para o qual a arte seria a sublimação de forças inconscientes censuradas pelo superego, a instância ética da personalidade. A teoria freudiana das sublimações permitiu uma nova interpretação da obra de Bosch, que viria complementar o sentido total, consciente ou inconsciente, da complexa trama simbólica de sua obra. A perspectiva psicanalista atribui conotação sexual a grande parte dos elementos presentes na obra do pintor, e revela em O Jardim das Delícias a presença de símbolos uterinos e fálicos, coitos e etc.

Segundo o crítico Brans, apesar da dificuldade de classificar cronologicamente a obra de Bosch (e de fazer um inventário de sua obra) é possível classificá-la em três períodos, e O Jardim das Delícias estaria incluído no terceiro período. Mas a atividade artística de Bosch é comumente dividida em duas vertentes: a realista e a fantástica (ou simbólica). A primeira inclui quadros de inspiração bíblica, nos quais segue o critério tradicional de divisão do espaço e de ordenação das figuras pela utilização dos esquemas geométricos em diagonal, piramidal e círculo; na segunda, o critério de composição é mais original e rompe com os padrões clássicos- aqui se inclui O Jardim das Delícias, bem como A Carroça de Feno e O Juízo Final.
Essas obras apresentam seqüências estruturadas em serpentina, que, segundo Read: “afastando-se de um primeiro plano minucioso em direção ao espaço infinito do cosmos, são determinadas por uma finalidade precisa, uma perfeita simultaneidade entre visão e pensamento. Não obstante, a complexidade miniaturista desses quadros não é caótica”.   (Mestres da Pintura, 1977, p. 09). 

Sim, a complexidade miniaturista de O Jardim das Delícias mantém uma ordem e uma harmonia surpreendentes, cujas partes intercaladas sugerem continuidade e movimento. A perspectiva é estranha (não havia sido contagiada pelos cânones renascentistas) e parece resultar apenas do tamanho das figuras e de sua disposição no espaço.

A incerteza acerca da vida e Bosch é tão grande quanto à do sentido de sua obra - já foram propostas diversas interpretações de O Jardim das Delícias, havendo um consenso acerca do sentido global da obra: o pecado original gerou no Paraíso um mal que se alastrou pela Terra e cujo castigo é o sofrimento do Inferno (tema recorrente em sua obra).     

Segundo Robert Cumming, (Para Entender a Arte, p. 24):

“Sua visão da humanidade é pessimista e moralizadora: o ser humano carrega uma falha fundamental desde a expulsão de Adão e Eva do Jardim de éden. Na filosofia de Bosch, a salvação é possível, porém com grande dificuldade, e o destino provável da maioria das pessoas é a danação eterna. A morte e o medo da morte são uma realidade sempre presente na sua arte”.

Não sei se de fato a obra é moralizadora ou irônica. A obra mostra as conseqüências do pecado, a trajetória do homem que parte do Paraíso, seu lar antes de sua queda, e passa pelos pecados terrenos até chegar ao inferno. Se Bosch representa, assim, a condenação do homem em razão de sua vida pecadora na Terra ou se faz disso um palco para reflexão, dotado de bom-humor e celebração, não se pode afirmar. 

Para CUMMING (P. 25):

“O painel central é uma dissertação sobre a luxúria em suas muitas formas. Para a mente medieval, o ato sexual era uma prova da perda do estado de graça pelo homem, assim, O jardim das delícias terrenas foi colocado entre o Jardim do Éden, onde o primeiro pedaço foi cometido, e o inferno, onde todos os pecados são punidos”.

No painel central de O Jardim das Delícias vemos grupos de homens e mulheres, todos nus, que se esbaldam na luxúria, cegos pelo desejo como animais (seres primitivos e inferiores). “À primeira vista as cenas parecem inocentes, mas os diferentes símbolos sexuais – frutas, peixes, esferas, etc. – logo modificam essa impressão. Tolnay comenta: ‘A intenção fundamental do pintor é tornar manifestas as conseqüências que derivam do prazer carnal e o caráter efêmero deste: os aloés, plantas suculentas, ferem os corpos nus, o coral e as conchas dos moluscos os aprisionam. No pequeno castelo das mulheres adúlteras, cujas paredes de cor alaranjada são atenuadas por uma cristalina transparência, dormem, rodeados de cornos, os esposos ofendidos. A esfera de cristal, onde um casal se acaricia, e o sino do mesmo material, que cobre pela metade um trio pecaminoso, vêm construir uma espécie de ilustração do ditado de que o prazer é frágil como o vidro’” (Mestres da Pintura, p.21). 

A sensualidade está em toda a cena, as formas esféricas ou ovóides, muitas delas fálicas, em vermelho ou num rosa alaranjado, dão a idéia de carne, pele, corpo. O caráter sensual também está no azul das águas, onde homens e mulheres banham-se sem culpa, divertindo-se, movidos pelo desejo, bem como nas frutas vermelhas, enormes, que representavam na época os prazeres da carne: “O ‘pecado original’ da humanidade foi comer o fruto proibido. Na linguagem medieval, colher frutos significava fazer sexo”, (CUMMING, p. 25). Os homens aparecem em poses sensuais e em muitas vezes bizarras, seus corpos são pálidos, sinuosos e alongados, e em todas as figuras prevalecem as formas arredondadas.

“Na Fonte da Juventude, banham-se negras exóticas e jovens loiras. À sua volta giram cavaleiros montados em todo o tipo de animais, reais e fantásticos, mais a cima, no Tanque da Luxúria, ergue-se a Fonte do adultérios, uma estrutura de ferro, ornada com os símbolos da heresia (cornos e meias-luas de mármore ou carne rosa). Ao redor do tanque, os quatro Castelos da Vaidade estão pintados com um traço tênue que ressalta o seu caráter efêmero; e, dali, personagens de todo o tipo tentam assaltar o céu”. (Mestres da Pintura, p. 21). 

Embora possa haver uma conotação moralizadora nessa obra, no painel central percebo certa simpatia do pintor em relação à cena: pela alegria, pelo humor explícito e pelo “algo de” doce e ingênuo na forma como ele nos mostra o pecado da luxúria - mesmo nas imagens que chocam pela estranheza e crueldade, como no homem com a cabeça submersa no lago, que segura seus genitais com uma framboesa (podre?) entre suas pernas. Para meu olhar contemporâneo, soa como uma “crueldade delicada” (pelas formas arredondadas, cores alegres e doces), e talvez por isso as imagens me sejam antes bizarras que violentas. Segundo COPPLESTONE (p. 56): “O curioso efeito geral desta orgia pastoral é de pacífica inocência e de uma delícia verdadeira”. Sim, a paisagem apresentada é por mim vista como uma espécie de “parque de diversões”, habitado por estranhos animais, pássaros gigantes, curiosas formas vegetais, frutas vermelhas e conchas enormes, onde homens e mulheres (pequenos em relação aos elementos, o que pode ser crítica à pequenez no homem) se divertem com suas acrobacias sexuais.     

Fraenger, estudioso da obra de Bosch, entende que o pintor não utilizaria cores e formas tão encantadoras para um objeto que queria representar como condenável - o que vem a sustentar minha opinião sobre a predominância da ironia em relação à moralização. Não obstante haja uma crítica, não podemos saber ao certo até que ponto Bosch estaria condenando esses homens. As imagens seduzem, atraem por sua beleza formal e pela estranheza, pela “bizarrice” das cenas - e acabamos deixando em segundo plano a condenação moral que para tantos estudiosos seria o cerne da obra de Bosch.

O painel central de O Jardim das Delícias reúne os temas eróticos da Idade Média e pode sim ser visto como um espelho que reflete a tolice humana: pessoas despreocupadamente se dedicando ao prazer, ao pecado da luxúria – mas isso pode significar mais uma alegoria crítica que um julgamento moral. Segundo BOSING:

“[...] é significativo o fato de no jardim do painel central não se verem crianças e de os seus habitantes não se esforçarem para subjugar a Terra, antes pelo contrário, parece que estão prestes a serem esmagados por aves e frutos gigantes. Assim o jardim não mostra o cumprimento do mandamento divino por parte de Adão e Eva, mas sim a sua perversão.” (p. 57 ).

No lago do fundo, homens e mulheres banham-se juntos, mas, no pequeno lago do meio, estão separados uns dos outros: dentro do lago há mulheres nadando e se divertindo enquanto os homens montam estranhos animais (fabulosos e híbridos) ao redor do lago. Para os moralistas medievais, era sempre a mulher que seduzia o homem para o pecado, seguindo o exemplo de Eva. Esse poder “maligno” da mulher foi diversas vezes representado na arte. Embora aqui também as mulheres estejam saindo do lago em direção aos homens, na obra de Bosch a ênfase nas apetências baixas e primitivas está mais evidente nos homens, que montam estranhos animais – o que servia como metáfora para o ato sexual.

Segundo Trewin Copplestone (Vida Obra de Hieronymus Bosch, p. 58):

“Este é o início da luxúria, o início da Queda, e Bosch menciona a natureza da atração sexual. [...] os homens estão todos alertas e conscientes de si mesmos. No alto uma mulher olha para fora do lago com a maçã, símbolo da tentadora Eva e Fruto proibido, equilibrada sobre a cabeça. Em toda a cena, outras mulheres preparam-se para sair do lago em direção aos homens, em vez de estes irem a elas. Era a crença medieval de que as mulheres eram os receptáculos da luxúria e a causa original da queda dos homens. Esta é a declaração mais positiva de Bosch sobre o prazer e as dores da atração sexual”.

Algumas cenas chamam a atenção. Uma dela é a do casal dentro de uma bolha. Parecem estar imersos no seu “mundinho” de prazer, distantes do mundo real, como até hoje acontece com casais desavisados. Outra é a da figura humana em azul, com o corpo mais realista que as demais e que parece sofrer mais que as demais, dentre os homens cercados por pássaros gigantes. Seria esse homem azul mais lúcido que seus companheiros? Mais humano no sentido evolutivo?  E ainda a dos homens e mulheres situados dentro de frutas exóticas, algumas poderes ou em decomposição, o que pode ser uma alusão à efemeridade do prazer carnal.

Gauffreau Sévy fez um catálogo sumário da simbologia de O Jardim das Delícias (Mestres da Pintura, p. 14): o tema dos peixes, muito freqüente na obra de Bosch, simbolizaria o pecado; o íbis, que vive do peixe morto, estaria associado à idéia do Diabo (segundo alguns historiadores o peixe simboliza a lascívia). Bosch também teria representado o Salvador pelas imagens do unicórnio, do cervo e do leão; seria possível também ver no pelicano o símbolo da redenção, assim como nas conchas e nas pérolas; os cardos, desproporcionalmente grandes, seriam a inconsciência das personagens; e o rato simbolizaria as falsidades e as mentiras que afastam o homem da fé e da idéia de Deus – no canto inferior esquerdo vemos um homem, fascinado e atemorizado, contemplando um rato no fundo de um tubo de vidro.

Segundo CUMMING (P. 25), no canto inferior direito há as figuras de Adão e Eva, sendo ele, Adão, a única pessoa vestida no paraíso, sentando com Eva na boca de uma caverna (segundo escritos apócrifos eles se refugiaram numa caverna depois de expulsos do Jardim de Éden). 

Acredita-se ainda que Bosch teria utilizava o repertório do gnosticismo alquimista, pois aparecem diversos símbolos típicos da alquimia em seus quadros: o ovo (símbolo do conhecimento), a árvore (representação da ascensão) e a sexualização dos elementos.

Também a representação dos Mistérios poderia ter influenciado a criação de Bosch, já que no século XV houve uma expansão notável dessas representações teatrais, cuja coreografia e cenografia tornaram-se cada vez mais ricas e complexas, e já que foram subvencionadas pela Confraria de Nossa Senhora, da qual o pintor fazia parte. Segundo alguns historiadores, algumas de suas obras podem ser transcrições de encenações dos Mistérios e, em outras, podem ser vistos vestígios de cenografias - de fato, pela composição de O Jardim das Delícias, podemos ver as personagens como se estivessem realizando uma coreografia, num cenário construído.      

O universo apresentado por Bosch em O Jardim das Delícias é surpreendente e confirma a peculiaridade da sua visão de mundo tão apontada pelos historiadores – visão esta que parece vir à tona, de forma inconsciente, nesse trabalho. Não é a toa que os surrealistas têm sua obra como referência! O fato de sua obra ter sido produzida na segunda metade do século XV, no auge do Renascimento mas fora dos cânones renascentistas, a torna uma obra diferenciada: Bosch continuava apegado às questões do medievo e produzindo imagens surreais, numa cidade provinciana povoada por religiosos conservadores. Foi um artista conservador, pelo apego ao medievo, mas moderno pela coragem de pintar o homem por dentro. Foi irônico e/ou moralista. Foi polêmico. Sua poética torna inevitável tentar imaginar a reação das pessoas da época ao se depararem com seus quadros - tarefa quase tão impossível quanto entender a obra (e as intenções) desse artista tão singular.      


BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Londres: Taschen, 1991. p. 51-57.
COPPLESTONE, Trewin. Vida e Obra de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 52-61.
Mestres da Pintura. São Paulo: Editora Abril, 1977. p. 05-19. 
CUMMING, Robert. Para Entender a Arte. São Paulo: Ática, 1998. p. 24-25.

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