sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

o Realismo no estúdio do pintor

Jean-Desiré-Gustave Courbet nasceu em Ornans, França, em 10 de junho de 1819, numa família de abastados fazendeiros politicamente socialistas. Foi para Paris estudar Direito, mas acabou dedicando-se à pintura, na qual iniciou copiando os grandes mestres espanhóis do século XVII, principalmente Hals e Velázquez, no museu do Louvre. Segundo CUMMING, ele foi o primeiro artista bem-sucedido a se opor ao sistema: “sua arte floresceu em oposição ao poderoso regime político e artístico que dominava a França na época”. Foi um defensor do Realismo, nova estética segundo a qual a arte devia tratar de fatos comuns, sem comentários morais nem idealizações (p. 74, Para entender os grandes pintores).

Segundo JANSON, Courbet começou como um romântico neobarroco, mas, influenciado pelos levantes revolucionários que varriam a Europa, chegou à conclusão de que a ênfase romântica sobre o sentimento e a imaginação era uma fuga à realidade da época – o artista moderno devia confiar em sua experiencia direta; devia ser um realista

No ano de 1849, pintou “Os Quebradores de Pedra”, considerada a primeira obra a concretizar plenamente o realismo.  

No começo de sua carreira pintou diversos auto-retratos, dentre eles “Auto-retrato com um cão”, de 1842 (obra já considerada realista), o “Enterro em Ornans”, de 1849 (um retrato da vida campestre que escandalizou pelo tema e pelo realismo) e “O estúdio do pintor”, de 1855 - um auto-retrato no qual faz uma crítica à sociedade da época, representando, junto de si, seus amigos intelectuais (personagens reais do cenário cultural da época) e uma mulher nua que, segundo estudiosos, representaria a verdade.

No mesmo ano, 1855, seus quadros foram recusados pela Exposição Universal, em Paris, devido aos seus temas demasiadamente prosaicos. Courbet reagiu construiundo um pavilhão perto do Salão onde expôs 44 obras que chamou de “realistas” – um marco desse movimento. Os organizadores aceitaram apenas onze de seus quadros, recusando, entre outras telas, “O estúdio do pintor” - quadro que mostra o atelier de Courbet em Paris, com aproximadamente seis metros de largura e apresenta o próprio artista no centro da composição pintando uma paisagem enquanto é “assistido” por diversas pessoas (dentre elas personagens reais). Ao seu lado está a mulher nua, que evidentemente não serve de modelo já que ele está pintando uma paisagem e que para os historiadores seria a representação a verdade.

Courbet registrou suas reflexões enquanto o pintava, por isso sabe-se que à direita do pintor estão personagens reais, amigos do artista e que à esquerda estão aqueles que segundo o próprio artista “florescem com a morte”: não só seus inimigos e as coisas que ele combatia, mas também os pobres, destituídos e perdedores na vida.

A obra vem com um estranho subtítulo: “Alegoria Real, Histórica, Moral e Física que resume um período de sete anos da minha vida artística”. Nesse trabalho, Courbet realiza um novo tipo de alegoria, uma “alegoria realista”, uma síntese simbólica da sociedade de sua época, com todas as camadas sociais representadas.

No canto esquerdo da composição, o pintor representa um crânio (símbolo arquetípico da morte) sobre um jornal – o que seria um comentário sobre os críticos, que, no século XIX, influenciavam fortemente a formação da opinião popular e artística. Também à esquerda, estão representados um chinês, um judeu, um veterano da Revolução Francesa, um operário, um irlandês e um caçador clandestino, que representariam os perdedores explorados pelos amigos de Courbet. Talvez essas figuras tenham também papéis alegóricos, Courbet não os definiu com precisão. Em primeiro plano, está Napoleão III disfarçado com roupas de caçador - seu regime, duro e repressor, desencadeou uma revolta popular da qual Courbet foi opositor. Na frente de Napoleão III, há, abandonado no chão, um chapéu, uma capa com uma adaga e um violão – objetos típicos do artista romântico – que podem representar o abandono da arte romântica, vista por Courbet como uma arte ultrapassada. Mais ao centro, há uma figura crucificada que, segundo CUMMING, seria um boneco de madeira articulado, em tamanho natural, que os artistas convencionais costumavam copiar. Isso simbolizaria a arte acadêmica, que Courbet rejeitava. Essa figura está na sombra projetada pelo novo tipo de arte que vemos no cavalete ao centro do quadro: uma paisagem realista que representaria a terra natal do artista.

A corrente predominante na arte ainda não considerava a paisagem um tema digno de um pintor sério – e Coubet parece estar se opondo a esta opinião, questionando as idéias vigentes no sistema das artes. Em frente à paisagem, há uma criança, um menino aparentemente pobre e sem instrução, que representaria a inocência. Courbet talvez esteja dizendo que prefere a visão direta e honesta dessa criança aos falsos valores da opinião culta e instruída. Segundo CUMMING, a presença da criança também é um pretexto para o artista desviar-se por um momento de seu trabalho e exibir o seu perfil “assírio”, de que muito se orgulhava – e isto também serve para lhe identificar como protagonista da cena.          

A mulher nua, junto ao artista, seria a representação da verdade nua que conduz o seu pincel. Courbet procurava pintar quadros que mostrassem a vida real da época, e as cabeças do pintor e da verdade inclinadas, unidas, podem representar uma relação de cumplicidade entre eles.

À esquerda há um menino ajoelhado no chão fazendo um esboço numa folha de papel. Segundo CUMMING, este menino, assim como a criança em frente ao cavalete, representa aquele que não foi acorrentado pela rigidez de uma educação formal: “Simplesmente registra da melhor maneira aquilo que vê, e isso era um dos princípios ventrais do Realismo. Courbet o inclui como um símbolo da liberdade e da espontaneidade, das quais depende o futuro da arte.”        

Courbet lutou pela independência do artista, que nesta obra está no centro da composição. A partir daí, ele assinala um novo horizonte de possibilidades para os artistas, livres de preceitos morais e encorajados a seguir seu próprio caminho, sem contar com qualquer outro pressuposto além do ser fiel a seus próprios princípios – sinalizando o rumo que tomaria a arte moderna no século posterior.

“O estúdio do pintor” é, para CUMMING, um manifesto onde o artista declara suas crenças e opiniões. Nesta obra ele declara sua idéia de que a pintura tem exigências próprias e “escancara” sua negação aos arranjos convencionais. Os historiadores consideram esta a obra mais ambiciosa de Courbet, a sua declaração de independência.

A proposta do Realismo era que a arte deveria adotar como tema a realidade da vida e mostrá-la sem elaboração, idealização ou sentimentalismo. Os temas incluíam camponeses, prostitutas, mendigos e outros aspectos da vida que a burguesia preferia não ver, como os personagens à esquerda da composição.

As figuras reais mostradas na obra influenciaram positivamente o desenvolvimento de Courbet como artista. As únicas desconhecidas pelos historiadores são os namorados à janela e o casal em primeiro plano, que parecem ser ricos colecionadores de arte. A figura sentada atrás da Verdade é reconhecida como o escritor Champfleury, fundador do movimento realista na literatura que apresentou a Courbet as teorias do Realismo. Champfleury não gostou deste quadro e logo rompeu a amizade com o pintor, pois reprovava seu envolvimento na política e suas “tentativas de escandalizar o público”. A figura sentada lendo um livro é Charles Baudelaire, amigo de Courbet. Atrás dele, próxima a um espelho escuro, estaria a namorada do poeta, Jeanne Duval. Esta figura teria sido apagada por Courbet, mas está reaparecendo com o tempo, à medida que a tinta vai se tornando mais fina.  

Nessa obra o artista também mostra a sua apurada técnica, conhecimentos de equilíbrio e unidade numa composição inovadora para a época (tratamento da luz e da sombra, apurado estudo estrutural para unificar um aparentemente acidental agrupamento de pessoas). Percebe-se a vontade do pintor de expressar o real, o que se vê, a imagem vista pelo olho. Suas pinceladas espontâneas criam espécies de marcas do tempo, o sujo, o gasto, o verdadeiro, o vivido (ou vivível). O real.

Courbet pintou grandes temas: a vida, a morte, a natureza e a existência humana, desafiando as correntes predominantes na arte convencional francesa da segunda metade do século XIX. Pintou paisagens campestres e marítimas, onde o romantismo e idealização são substituídos pela representação de uma realidade oriunda da observação direta. Um dos temais mais explorados por Courbet foi os trabalhadores, representados sem nenhuma emoção, mais parecendo parte de uma paisagem do que personagens. O público não entendeu a nova “estética das classes trabalhadoras”.

Segundo JANSON:

“O Realismo de Courbet, então, foi mais uma revolução temática que uma revolução no estilo. Contudo a fúria dos conservadores que o viam como um radical perigoso é compreensível; sua absoluta condenação de todos os assuntos extraídos da religião, mitologia, alegoria e história apenas manifestava o que muitos outros começaram a sentir mas não tinham ousado colocar em palavras.” (p. 329)

Em sua fase realista, Courbet se manteve muito longe do colorismo romântico, aproximando-se do realismo espanhol barroco, com uma profusão de pretos, ocres e marrons, banhados por uma pátina cinza – o que se pode ver em “O estudio do pintor”.

Por volta de 1850, o realismo de Courbet foi dando lugar a uma pintura de formas voluptuosas e conteúdo erótico e a elas seguiu-se uma série de naturezas-mortas e  quadros de caça. Em 1860 pintou uma série de paisagens e marinhas, “Luta de cervos” e “O mar agitado”, que, pelo tratamento da luz e do conjunto, prenunciaram, junto com as obras de Corot, as novas concepções impressionistas.

Após a queda da comuna republicana de Paris, em 1871, da qual foi presidente da comissão de belas-artes, Courbet foi condenado a seis meses de prisão e ao pagamento de uma elevada multa. Em 1873, o artista exilou-se na Suíça, onde morreu em 31 de dezembro de 1877, na cidade de La Tour-de-Peilz.

Assim como muitos historiadores, penso que Courbet foi um artista imprescindível naquele momento histórico. Ele questionou as convenções vigentes no sistema das artes, opondo-se ao classicismo e ao romantismo com propósitos sociais e artísticos. Seu Realismo provocou uma revolução temática e, com isso, uma nova forma de ver a arte – questão que veio à tona nos movimentos artísticos posteriores. “O estúdio do pintor” é uma obra que resume as idéias do artista: Courbet explora ao máximo sua crítica social e suas convicções realistas, colocando o artista no centro da composição, ou ainda, a arte no centro daquele universo.




Partindo do estranho subtítulo “Alegoria Real, Histórica, Moral e Física que resume um período de sete anos da minha vida artística”, penso que “O estúdio do pintor” remete a uma questão que por muito tempo esteve em discussão na arte contemporânea: a natureza da arte, ou, “o que é arte”. Penso que neste trabalho Courbet está de algum modo questionando o “ser ou não ser arte”. Ele  apresenta, no centro da composição, outra pintura sendo feita - uma paisagem, tema tantas vezes rechaçado do campo das artes. Então mesmo levando em conta que para Courbet arte seria a representação da realidade da vida, que para ele havia esta afirmação, penso que, diante de todas aquelas figuras representadas na cena (intelectuais e povo) e diante de todo o público que viesse a se deparar com a obra, Courbet de alguma forma questionou a natureza da arte, ainda que sem intenção. Porque uma alegoria moral requer um pensamento crítico-filosófico (teórico). Porque uma alegoria física implica a importância da matéria (pintura). Porque o resumo de sete anos de uma vida artística pressupõe um pensamento que chegou à afirmação de que arte é a representação da realidade. E porque se a obra “O estúdio do pintor” é arte na medida em que representa a realidade, o que seria aquela paisagem que ele pinta ao lado da verdade? Segundo os historiadores seria um novo tipo de arte, uma paisagem realista que representaria a terra natal do artista. Nesse caso Coubet estaria criticando o establishment da arte. Mas quem sabe, por ironia, não seria a pintura do que ele não vê, uma paisagem imaginada? (já que está fechado em seu ateliê). Se assim fosse, para quem nunca pintou um anjo porque nunca viu um, aquela paisagem poderia não ser arte. Seria apenas pintura. Haveria no centro da composição um jogo de proposições. Imagem que afirma perguntando, que dita e leva além a nossa concepção de objeto artístico - e com isso a concepção da própria de arte.  Algo como “isto não é um cachimbo” (é representação/é pintura/é arte), como bem mais tarde afirmou Magritte.


(Aviso aos estudantes que porventura achem o meu blog e venham estudar este texto: Esse artigo é formado por opiniões muito pessoais. Portanto, muita calma nessa hora).

CUMMING, Robert. Para entender os Grandes Pintores. São Paulo: Ática, 1998. p. 74-75
CUMMING, Robert. Para entender a Arte. São Paulo: Ática, 1998. p. 82-83.
JANSON, H. W. Inicição à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 328-329

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